quinta-feira, 19 de março de 2009

DE SAUL A DAVI – A TRANSIÇÃO ENTRE O MONARCA DOS HOMENS E O GOVERNANTE DE DEUS - FINAL


Capítulo 17 – A pedra que matou Golias também derrota Saul

Golias não foi apenas um gigante que morreu pelas mãos de um pequeno ruivo. O episódio do gigante serviu como porta de entrada para Davi na sociedade israelita assim como foi realmente a aceleração da queda do decadente Saul.

Saul já não tinha mais moral com a tropa e nem mesmo os inimigos filisteus não o temia. O Deus de Israel havia se afastado do rei, e isso já era notório até mesmo aos seus inimigos. A petulância de Golias em desafiar um único soldado do exercito Israel mostra a tamanha covardia e despreparo, já que a guerra estava parada a mais ou menos 40 dias.

A covardia do rei contaminou todo o exército, mas Davi não foi contado entre eles, e enfrentou o gigante com coragem. Apesar de a história lembrar os contos heróicos da Ilíada de Homero, e Golias talvez representar a grande força do exercito filisteu; a mensagem principal era de que o Espírito de Deus agora estava capacitando outro guerreiro, alguém que não tinha nada haver com o rei e seu exército medroso.

Mas uma vez Iahweh inverte a lógica das coisas. O Ungido Saul deu lugar ao pequeno Davi; o alto e poderoso rei não sabia, mas antevia em Golias a sua própria queda diante daquele ruivinho ousado.

Como um homem ligado às aparências, Saul viu em Davi a salvação do seu reino. Aquele rapaz era o “garoto propaganda” que o rei “pavão” precisava para se exibir e ganhar a aceitação do povo. Naquela época, não importava de quem havia sido o feito, toda a vitória era creditada ao rei e ao deus daquele povo. Como Israel agora tinha um rei igual aos das demais nações, a regra continuou a mesma.

Mas novamente Davi é um instrumento nas mãos de um Deus que subverte a ordem das coisas. Quem passa a ser honrado é o próprio Davi, pois o povo já conhecia o tipo de rei que possuíam. O reconhecimento, os cânticos de vitória das mulheres que se tornaram provérbios em todo em Israel, as pompas dadas a Davi despertam não só a inveja de Saul, mas o medo de perder o trono para aquele jovem que tinha o que ele não tinha: a unção e a coragem. O jovem pastor deixa de ser um brinquedo nas mãos de Saul e passa a ser um perigo em potencial para a manutenção da realeza, pois Saul sabia que Deus estava com ele como um dia também esteve com Saul.

Acredito que ao ver as vitórias de Davi e perceber como Deus operava através da vida daquele pequeno, Saul via a si mesmo, num passado distante. Davi era o “aviso-prévio” daquele rei decadente, era a confirmação de que para Saul não havia mais saída.

Mesmo assim o rei não se arrepende de suas faltas ele persegue Davi sempre que havia uma trégua entre as guerras, ele cria situações para que Davi morra, ele mesmo tenta matá-lo, oscila entre momentos de remorso e de fúria como que sofre de transtornos mentais sérios. Saul perde completamente o equilíbrio e a saúde, acabando por materializar em Davi o seu pior inimigo: Iahweh.

A pedra que saiu da funda de Davi não matou somente a Golias, mas destruiu também a Saul.

Capítulo 18 à 31 – Ao perseguir o jovem Davi, Saul o prepara para reinar

Quanto mais Saul persegue Davi, na intenção de matá-lo e assim preservar o trono para a sucessão de Jônatas, as situações criadas por ele servem para forjar o caráter do novo rei.

Gostaria de enumerar apenas alguns fatos importantes que aconteceram na vida de Davi motivados pela perseguição de Saul:

1. Sua amizade com Jônatas foi fortalecida, ensinando ao jovem Davi o valor de uma verdadeira amizade e o aspecto sagrado de um voto perante Deus (20:11-17).

2. Davi exilou-se em outros paises, aprendendo assim a tratar com diversos tipos de pessoas. Ele precisou se fazer de louco para uns (21:11-16), aliou-se com outros temporariamente (27:1-4) para fugir de Saul. Convive entre os vadios e fora-da-lei, aqueles mesmo que não aceitavam a liderança de Saul, levantando assim um exército pessoal em torno de seiscentos homens. Nesse ponto Davi exerce, mesmo que inconsciente, uma liderança paralela a de Saul, pois até mesmo um sacerdote alia-se ao bando de Davi (22:20-23).

3. Davi aprende sobre a misericórdia e sobre domínio próprio no episódio de Nabal e Abigail (25). A ingratidão de Nabal, mesmo sabendo da fraternidade existente entre os bandos de vadios e os donos de propriedade, que relativamente “pagavam” para ter segurança em suas terras, desperta a ira de Davi. Mas a sabedoria de Abigail, que se humilha, lembrando assim a Davi a sua própria pequenez, faz com que ele não volte sua mão contra Nabal. Davi aqui aprende a confiar na justiça retribuitiva de Deus, confiança e paciência que ele precisará ter com Saul, e mais tarde precisará exercê-la também com seu filho Absalão.

4. Davi compreende mais sobre o respeito ao cargo de monarca. Ao não matar Saul nas duas oportunidades que teve, ele estava atribuindo valor ao cargo de rei, reconhecendo que a autoridade de Deus estava sendo exercida na figura do monarca. Davi estava compreendendo a real importância da unção que havia recebido, e assim estava próximo daquilo que Deus desejava de um novo rei: a reverência perante a vida e as instituições divinas; o que claramente não houve em Saul.

5. No capítulo 27, Davi, mesmo aliado aos filisteus, usa de sua influência e de seu novo cargo a favor do povo que vivia no Negueb de Judá. Ele apreende a usar cada situação em favor do seu povo. No capitulo 30, no episódio dos despojos dos guerreiros, Davi exerce justiça e reconhece o valor dos homens que estavam com ele. Davi usa de discernimento ao entender que as vitórias eram pertencentes a todo exército, e não somente aos que lutam.

Confiança em Deus, senso de justiça, astúcia (prudência), sentimento de solidariedade e misericórdia são algumas das qualidades que foram forjadas no caráter de Davi ao longo de sua caminhada pelo deserto até chegar ao trono. Deus levanta no deserto, pelas mãos do próprio Saul, um rei que seria “segundo o seu coração”.

Capitulo 31 – Até mesmo na morte, Saul ainda preza pelas aparências

A morte de Saul é o retrato da profunda decadência de um homem que vive segundo as aparências, de acordo com o personagem que ele mesmo criou.

O mesmo rei que havia mandado matar todas as necromantes precisa agora recorrer à pitonisa de En-dor, algo mais fácil do que ter que reconhecer que Iahweh já o havia abandonado há tempos. Sua arrogância não dá trégua, pois se Iahweh já não lhe respondia, era a hora de Saul parar de lutar contra Deus e reconhecer que tudo estava perdido para seu reino.

O orgulho não dá brecha, e Saul recorre a uma necromante para saber o que deveria fazer. Mesmo sendo comunicado sobre sua futura derrota (que já estava tão visível que não precisava nem Samuel profetizar), a covardia de Saul o conduz a própria morte.

Saul tinha medo do povo, tinha medo do que “iriam pensar” sobre ele. Já que era para morrer, é melhor morrer lutando contra Deus e continuar posando de aliado de Iahweh. Sua atitude com Agag é relembrada durante a batalha contra os filisteus, levando ele a pensar: “Se esses incircuncisos me capturarem, vão escarnecer de mim perante o povo, e meu nome será motivo de zombaria em toda a terra”.

Para quem vive de aparências, nada melhor do que forja uma morte gloriosa no campo de batalha, para que seu nome fosse lembrado como “o primeiro rei que deu sua vida pelo seu povo”.

Mas mesmo assim Saul não escapou da vergonha. Seu corpo e dos seus três filhos mortos em batalha foram decapitados, suas cabeças e suas armas foram exibidas em toda a cidade, como símbolo de vergonha, e logo após foram colocas no templo de Astarate, significando assim que uma deusa derrotou o rei de Iahweh. Fixados no muro da cidade de Betsã, seus corpos nus foram exibidos para total vergonha do reinado de Israel. O rei que sempre prezou pelas aparências não escapou de tamanha humilhação.

Talvez maior humilhação fora à atitude do povo de Israel. Ninguém, exceto o povo de Jabes-Gileade, que tinham uma divida de gratidão com Saul, foram os únicos a oferecerem sepultura para o rei e seus filhos. O restante não deu honra ao seu próprio rei, e covardemente não foram buscar seu corpo, nem mesmo sua própria tribo, Benjamim, tamanha a rejeição que Saul tinha entre os seus.

Conclusão

O monarca do povo morreu abandonado pelo seu ídolo. Saul trocou Deus por um ídolo, que era o seu próprio reino, seu próprio povo e sua própria imagem. O primeiro rei israelita pecou por desejar não só ser o primeiro, mas o único; por desejar ser ele mesmo o próprio deus, mantendo por suas próprias forças aquilo que Iahweh havia lhe da graciosamente.

A transição de Saul para Davi é o símbolo da transição entre o governo dos homens e a liderança de Deus. É a tipologia da desastrosa auto-imagem que criamos e da presunção de buscar ser independente aos olhos de Deus. Saul era reflexo do coração de seu povo, Davi refletia o coração e vontade de Deus.

Acabo concluindo que a história de Saul e Davi não é apenas sobre uma transição política conturbada acontecida no passado remoto de Israel. Saul e Davi são os tipos de uma transição espiritual e existencial que devemos trilhar por toda nossa vida; a troca entre o reinado do eu pelo reinado de Jesus em nós e através de nós.

Saul precisa morrer e Davi precisa reinar!

Estamos dispostos?


Jorge Luiz

Um comentário:

  1. Passando só pra dizer que gostei muito do texto, apesar de ter lido logo a última parte da série(hehehe...). Um abraço, passa no meu blog (creioporqueeabsurdo).

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