Estava conversando com minha esposa acerca de uma amiga que ela foi visitar. Seus pais estão “desviados da Igreja” e ela está sendo “discipulada” por um pastor de uma igreja enquanto freqüenta outra aos domingos. Sua mãe confessou que não sabe qual “verdade” seguir, pois são muitas! Cada um chega com sua verdade, e fica difícil saber qual é a certa.
“ – CREIO EM JESUS, MAS NÃO O CONFESSO EM NENHUMA IGREJA, PREFIRO FICAR EM CASA, FAZENDO MINHAS ORAÇÕES!”
O que temos a dizer para pessoas como essa? O que há de relevante em nosso discurso para ajudar pessoas como essa a alcançar um maior entendimento? Será que ela realmente precisa de um “maior entendimento”?
O Cristianismo pegou a única Verdade e transformou em verdades, ao gosto de freguês. Recordo-me da pergunta de Pilatos: Qual é a Verdade? Jesus tinha dito a ele que aqueles que eram da verdade, permaneciam, viviam, existiam na verdade; somente esses entendiam suas palavras, sua voz familiar de Senhor e Deus das suas vidas.
A ÚNICA VERDADE É JESUS, EXISTIR EM JESUS, VIVER EM JESUS. TUDO QUE FOGE OU ALTERA ISSO É APENAS MENTIRA.
A percepção do que é verdadeiro vem de um encontro tão particular e íntimo com Deus que religião nenhuma abarca ou compreende. Não foram os versados, os conhecedores, os mestres, os “lideres de discipulados”, ou qualquer outra “patota” dessas que enxergou a verdade, foram apenas aqueles que tiveram um encontro com Jesus. Os que olharam em seus olhos e ouviram sua voz, esses sim tiveram uma percepção de Deus e do que é verdadeiro.
Minha grande pergunta é: Como as pessoas hoje; num mundo que possui tantos “Cristos” que se torna impossível calcularem, chegarão a olhar nos olhos do verdadeiro e ouvirão sua verdadeira voz no meio de tantas outras vozes?
Se eu não responder essa pergunta será inútil evangelizar, inútil pregar, inútil falar sobre Cristo, porque afinal alguém que me lê agora poderá dizer que esse Jesus é apenas o que eu creio ser o verdadeiro.
Num mundo onde se fala tanto do “Jesus que eu creio”, o “Jesus que eu conheço”, como eu posso revelar o Verdadeiro Cristo de forma que as pessoas o enxerguem? De forma que elas queiram segui-lo e de forma que a Igreja não seja um lugar de morte; mas simplesmente uma comunidade daqueles que celebram e caminham na visão da Verdade?
Os que possuem “muitas verdades” não possuem nenhuma, só há uma Verdade, por mais dogmático que possa parecer, e essa verdade não é um mandamento, é uma pessoa.
Não sei como, mas o Espírito de Deus pode me orientar a revelar o Verdadeiro Jesus de forma que muitos discirnam a mentira e se convertam para a Verdade. Que os meus olhos e meu coração percebam o que é verdadeiro no meio de tanta falsificação.
Uma pérola da Nietzsche para que possamos meditar. A citação foi extraída do livro de Rubem Alves (Religião e Repressão, Teológica, 2005).
Ó, meus irmãos, um homem, certa vez, viu os corações dos bons e dos justos e disse: "Eles são fariseus". Mas ele não foi entendido. Os bons e os justos não podiam entendê-lo. O seu espirito estava prisioneiro de sua boa consciência. A estupidez dos bons é imensamente sagaz. Esta entretanto, é a verdade: os bons têm de ser fariseus - eles não tem nenhuma opção. Os bons têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude. (pág. 326)
Entre Betel e Fanuel (ou Peniel), passaram-se vinte anos da vida de Jacó, e ao lermos bem a história de Jacó, ele não desfrutou da barganha que tentou fazer com Deus, mas a vida se impôs a ele de forma que não imaginava.
O Jacó que enganou seu irmão experimentou na própria pele o que é ser enganado, pois seu tio Labão o fez trabalhar sete anos por sua filha Raquel, e no dia do casamento, Jacó é enganado e passa a lua de mel com Lia, sendo obrigado assim a assumi-lá como esposa. Depois trabalha mais sete anos em troca de Raquel, e mais seis anos em troca de salário.
Enfrentou problemas com a família, com as suas mulheres, com os cunhados e com o sogro. Para enganar o sogro Jacó descobre uma forma de fazer com que os animais parissem crias listradas, salpicadas e negras; que pelo último acordo, seriam dadas a Jacó. Propositadamente, ele faz com que as crias brancas sejam as mais fracas, e assim, enriquece acima do sogro.
Para Jacó, o fato de ter manipulado o momento do acasalamento dos animais de Labão não era engano, mas retribuição de Deus às maldades do sogro, como afirma no capitulo 31. Interessante que o anjo afirma ser o “Deus que te apareceu em Betel, onde ungiste uma estela (coluna) e me fizeste um voto” (vs. 11-13). Ou seja, a malandragem de Jacó era justificada pelo “deus da barganha” que ele criou em Betel. Não estou dizendo que o Deus verdadeiro não esteve na visão em Betel, apenas desejo que possamos perceber que entre a aparição de Deus e a interpretação que Jacó deu a esse evento e a sua própria “divindade”, existe um tremendo abismo.
Essa divindade justifica toda injustiça em prol dos “ungidos de Deus”, retribui o mal na mesma moeda, e age em favor daqueles que são capazes de fazer votos e criar seus altares de pedra. Esse era o “deus” de Jacó em Betel e o mesmo que ainda trafega em muitos ambientes “cristãos”. Jacó enriqueceu como desejava, mas não a custa de sofrimento, desentendimentos, crises na família, e diversos outros problemas, tanto que acaba fugindo pela segunda vez em sua vida.
Agora Jacó foge da fúria do enganado Labão, o pior que ele foge de um enganado para encontrar-se com a outra vitima de seus enganos. O sogro encontra Jacó nos montes de Gileade e é orientado por Deus a não fazer promessas nem ameaças. O sogro está à procura de um ídolo que Raquel lhe roubou, porém ele acredita ter sido Jacó o ladrão, mas Raquel o esconde de forma que Labão não o encontra.
Cada ídolo de um clã ou família servia não só para adoração, mas também para a proteção daquele grupo. Raquel roubou os ídolos para que os deuses lhe protegessem naquela viagem e naquele tenso encontro com o irmão traído de Jacó. O roubo de Raquel apenas materializou o ídolo que o marido havia criado em sua cabeça.
Já que Labão estava desprotegido de seus deuses, não lhe restou outra coisa senão fazer um novo acordo com Jacó, demarcando fronteiras para que nenhum possa prejudicar ao outro. Esse acordo era uma espécie de reconciliação entre Jacó e Labão, onde ambos entenderam que era o momento de haver separação e cada um seguir seu rumo, pois a convivência entre os dois seria terrível e recheada de enganos. Mas tal em encontro apenas mostra algo que Deus desejava fazer em Jacó: ensinar-lhe a sair de uma etapa da vida reconciliado com o passado que deixou para trás, coisa que ele não havia feito com Esaú, mas que já estava prestes a fazer.
Jacó sai dali com os exércitos de Deus, pois havia vencido esta etapa da vida sabendo o valor de uma reconciliação. Agora lhe restava ir ao encontro com seu temível irmão Esaú.
A angústia e o medo apoderaram-se de Jacó, e como ele sabia que seu irmão não era um cara tão tranqüilo, ele toma precauções para proteger sua família e fica só na noite que antecede ao seu encontro. Esse é um momento único de Jacó, onde ele se separa para orar ao seu “deus” em busca de proteção.
Jacó se mostra frágil, sua fé na promessa fraqueja diante do terrível obstáculo que virá a sua frente e ele sente-se só em todos os sentidos. É nesse estado interior que Jacó luta com um anjo até o dia amanhecer e não há outro estado para apresentar-se diante de Deus que não seja a humilhação.
O texto diz que Jacó lutou e venceu, mas ele saiu ferido na coxa de forma a ficar manco. Jacó venceu porque ele conheceu a luta desde seu nascimento, ele lutou no ventre da mãe, lutou para ser primogênito, lutou pela mulher que amava, lutou pelo bens que possuía (mesmo que seus métodos sejam reprováveis) e enfrentou em todos os momentos as perdas e ganho que as batalhas da vida acarretam.
Jacó não foi vitorioso da forma que imaginava, mas venceu porque em todos os momentos da sua vida não se acovardou diante das circunstâncias. Jacó venceu porque percebeu que estava lutando com Deus e então O agarrou desesperadamente para ser abençoado. Mas Deus não o abençoou como ele queria, mas o salvou de seu passado ao mudar seu nome.
Imagino Deus dizendo: “Você era Jacó, aquele que enganava, usurpava, mentia. Mas você aprendeu que nem tudo na vida se faz com enganos, atalhos e barganhas. A vida exige luta, coragem e dedicação, e você aprendeu isso. Descobriu que o mundo não era aquela redoma de vidro que sua mãe criara, Sentiu o gosto de ser enganado e usurpado dos seus direitos. Mas você não se acovardou, enfrentou a tudo e a todos da forma que sabia e com as armas que possuía, e sendo assim venceu. Por isso você se chamará Israel, porque em tudo perseverou”.
A benção que Deus deu a Jacó foi o caminho do amadurecimento, o caminho que ele fez de Betel até Fanuel. A benção já estava na graça de Deus que, mesmo com todas as imperfeições e inadequações de Jacó; não se apartou dele em momento algum. Israel era alguém que entendeu que na vida existem lutas, e com ela, perdas e ganhos que a dão forma. Ele agora não precisa fazer votos de bênçãos e prosperidade material, pois ele entendeu em Fanuel que Deus lhe deu a vida graciosamente e a guardou mesmo após lutar com Ele (também com todos os homens antes, e também com todos os que virão após).
Nasce o sol, um novo dia, e com ele um novo homem chamado Israel. Esse novo homem é deficiente, manca de uma perna, sendo frágil também no coração, pois entende que tudo o que tem é simplesmente a vida que lhe foi salva.
Essa é a essência do encontro com Deus, não o orgulho e a barganha de Betel, mas a fragilidade e humildade, a humanização de Fanuel. É em Fanuel que Deus deixa de ser um ídolo e assume sua verdadeira identidade em nosso coração. Houve uma verdadeira reconciliação entre o Deus que apareceu a Jacó e aquele que ele criou e chamou de "Betel".
Ambos os momentos são paradigmáticos na vida de todo peregrino espiritual, então o que nos cabe é discernirmos tal caminhada e seguirmos até Fanuel, lugar onde se celebra a vida, mesmo que seja mancando!
A peregrinação espiritual de Jacó teve um ínicio bastante conturbado, aliás, o que não faltou na vida de Jacó foram períodos de crise.
Em sua vida já começa fugindo da fúria do irmão que enganou; desligado da mãe super-protetora que possuía e caminhando para uma terra que não conhecia em busca de parentes distantes dos quais não possuía intimidade. Em certo ponto, a vida de Jacó estava completamente desmoronada, e ele precisava construir agora sua própria história, inclusive sem a interferência de Rebeca.
No caminho Jacó resolve pernoitar e ali tem um sonho: contemplava uma escada que se erguia sobre a terra e seu topo atingia o céu, e os anjos de Deus subiam e desciam sobre ela. Então Iahweh se coloca em pé diante de Jacó e refaz com ele toda a aliança que já havia feito com Abraão e Isaac.
Vejamos as Palavras de Deus a Jacó:
“Perto dele estava o SENHOR (Iahweh) e lhe disse: Eu sou o SENHOR (Iahweh), Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaque. A terra em que agora estás deitado, eu te darei, a ti e à tua descendência. A tua descendência será como o pó da terra; estender-te-ás para o Ocidente e para o Oriente, para o Norte e para o Sul. Em ti e na tua descendência serão abençoadas todas as famílias da terra. Eis que eu estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores, e te farei voltar a esta terra, porque te não desampararei, até cumprir eu aquilo que te hei referido.” (Gn 28:13-15)
Quis destacar alguns aspectos da promessa de Deus a Jacó principalmente para que possamos compará-las com a reação de Jacó àquele momento espiritual único.
Jacó então acorda e diz: “Na verdade, o SENHOR está neste lugar, e eu não o sabia... Quão temível é este lugar! É a Casa de Deus, a porta dos céus.” (Gn 28:16-17) Então ele faz toda uma cerimônia baseada em ritos pagãos, onde santifica a pedra que lhe serviu de travesseiro, ungindo-a com óleo e deu aquele lugar o nome de Betel (bêt El, ou seja, Casa de Deus).
Consequentemente, o jovem exilado santifica a pedra e o lugar onde dormiu, atribuindo a eles uma espécie de poder mágico que fora responsável por tal experiência. É como afirmar: “Deus se manifestou a mim porque eu estive nesse lugar mágico, ao qual devo chamar de Casa de Deus. Aqui existe um portal entre o mundo de Deus e o dos homens simbolizado pela escada, portanto, estou em um lugar terrível.”
Jacó pensava com a mente pagã, dedicando poder ao lugar, a pedra, ao rito, a cerimônia, enfim, materializou a experiência sagrada que ele teve de forma a perder o verdadeiro sentido daquilo que estava acontecendo. Prende-se ao símbolo sem ter a capacidade de interpretá-lo.
Deus, no ínicio de sua fala, afirma a Jacó que aquela terra, que ele chama de Betel, na verdade pertence a ele e a sua descendência. A terra que ele sacralizou na verdade seria casa dos homens, casa de Israel. Com o tempo, na evolução da teologia judaica, se compreenderá que Deus não habita em montes, tendas, e não pode ser representados por pedras. Toda espiritualidade que segue essa busca fanática por materializar o divino acaba por distorcer o verdadeiro sentido da revelação. E quando se perde o sentido, perde-se também a capacidade de transformação.
O que para Jacó era Casa de Deus, para Deus era casa dos homens. Sendo assim, todo e qualquer lugar que arrogue para si à missão de ser Betel, precisa antes ser casa de homens, casa da vida, da humanidade em aliança com Deus.
Jacó não apenas materializou a experiência que teve, mas também orgulhou-se dela. Quando o mesmo diz que estava em lugar sagrado e não sabia, ele está afirmando que o fato de ainda estar vivo depois de dormir em lugar sagrado dá a ele uma espécie de “unção especial” diante de Deus, ou como dizemos, o cara tava “cheio de moral”!
Para alguém que estava sem casa, sem mundo, tendo agora que construir sua história a partir dele mesmo; compreende-se que Deus vem mostrar-se a Jacó e reanimá-lo para que ele possa prosseguir o restante de sua caminhada com esperança. A esperança é o combustível de toda produção humana, é o que Rubem Alves afirma quando diz que presente deve estar “engravidado” pelo futuro. Deus veio até Jacó para fertilizar o presente com a esperança que move para o futuro.
Mas ele toma as promessas, as sementes do futuro dadas por Deus, e as transforma em moeda de barganha. Jacó simplesmente tenta negociar com Deus naquilo que Deus já havia prometido a ele. Vejamos:
“Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta jornada que empreendo, e me der pão para comer e roupa que me vista, de maneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então, o SENHOR será o meu Deus; e a pedra, que erigi por coluna, será a Casa de Deus; e, de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo.” (Gn 28:20-22)
Jacó faz uma negociata com Deus, tratando-o na linguagem que ele conhecia, o “toma lá da cá”. Ele quer trocar bênção por devoção, milagre por adoração, livramento por oração, zelo por religião. Jacó servirá a Deus se Ele cuidar de cada detalhe de sua vida, da roupa ao pão, passando pela mulher, filhos, bens. E Jacó servirá a Deus da forma mais religiosa caricaturada em nossos dias: construindo uma casa (igreja) e “pagando” o dizimo, para que esse “acordo de cavalheiros” perdure por longo tempo.
Vejamos que o Jacó de Betel não entende o que Deus está lhe prometendo, Deus prometeu cuidar dele sem nada em troca. Deus faz aliança com um homem que não lhe considera seu Deus. Iahweh simplesmente age com graça para Jacó, mas a espiritualidade pagã de Jacó não consegue decodificar a mensagem da Graça, pois todas as relações espirituais pagãs são de escambo, troca e mercantilismo com o divino.
Ele não entende por benção o fato de Deus fazer aliança com ele para cuidar e não desampará-lo até que se cumpra a todas as promessas feitas desde Abraão. Para o Jacó de Betel, benção é algo especifico: possuir bens, ter o que comer e vestir, ser imune a todo mal que possa se abater sobre sua vida e voltar para casa de seu pai vitorioso, até mesmo como forma de humilhar o irmão enganado.
O Jacó de Betel é esse homem: idolatra, pois levantou uma pedra como “coluna mágica”, atribuindo ao lugar em que estava a causa de sua experiência; pagão, já que não consegue entender a aliança e a promessa de Deus como fruto exclusivo do Seu favor sobre sua vida e arrogante, devido a considerar ser capaz de negociar com Deus por achar que para Deus sua adoração e seu dizimo eram muito importantes para Ele.
Mas entre Betel e Fanuel há um longo caminho a percorrer...
Após dois meses da morte do meu irmão, percebi que o que mais dói não é o luto, mas sim os sentimentos que se processam durante o luto.
O pior deles se chama Vazio. Aquela sensação terrível e esquisita de que ficaram coisas para trás, hiatos que não podem mais ser preenchidos e relacionamentos mal construídos.
Sendo assim, diante do Vazio resta o mais profundo lamento, e uma necessidade de se sentir perdoado pelo que não fez.
E pior ainda, diante da omissão passada sentimos um gosto rançoso na boca, um resquício de que as mesmas atitudes poderão se repetir no futuro. Portanto, dentro do luto podem habitar o Vazio, o lamento, a culpa e a possibilidade de novos erros.
No luto não aprendemos nada, apenas nos descobrimos.
Precisamos aprender o que significa relacionamento.
Capítulo 17 – A pedra que matou Golias também derrota Saul
Golias não foi apenas um gigante que morreu pelas mãos de um pequeno ruivo. O episódio do gigante serviu como porta de entrada para Davi na sociedade israelita assim como foi realmente a aceleração da queda do decadente Saul.
Saul já não tinha mais moral com a tropa e nem mesmo os inimigos filisteus não o temia. O Deus de Israel havia se afastado do rei, e isso já era notório até mesmo aos seus inimigos. A petulância de Golias em desafiar um único soldado do exercito Israel mostra a tamanha covardia e despreparo, já que a guerra estava parada a mais ou menos 40 dias.
A covardia do rei contaminou todo o exército, mas Davi não foi contado entre eles, e enfrentou o gigante com coragem. Apesar de a história lembrar os contos heróicos da Ilíada de Homero, e Golias talvez representar a grande força do exercito filisteu; a mensagem principal era de que o Espírito de Deus agora estava capacitando outro guerreiro, alguém que não tinha nada haver com o rei e seu exército medroso.
Mas uma vez Iahweh inverte a lógica das coisas. O Ungido Saul deu lugar ao pequeno Davi; o alto e poderoso rei não sabia, mas antevia em Golias a sua própria queda diante daquele ruivinho ousado.
Como um homem ligado às aparências, Saul viu em Davi a salvação do seu reino. Aquele rapaz era o “garoto propaganda” que o rei “pavão” precisava para se exibir e ganhar a aceitação do povo. Naquela época, não importava de quem havia sido o feito, toda a vitória era creditada ao rei e ao deus daquele povo. Como Israel agora tinha um rei igual aos das demais nações, a regra continuou a mesma.
Mas novamente Davi é um instrumento nas mãos de um Deus que subverte a ordem das coisas. Quem passa a ser honrado é o próprio Davi, pois o povo já conhecia o tipo de rei que possuíam. O reconhecimento, os cânticos de vitória das mulheres que se tornaram provérbios em todo em Israel, as pompas dadas a Davi despertam não só a inveja de Saul, mas o medo de perder o trono para aquele jovem que tinha o que ele não tinha: a unção e a coragem. O jovem pastor deixa de ser um brinquedo nas mãos de Saul e passa a ser um perigo em potencial para a manutenção da realeza, pois Saul sabia que Deus estava com ele como um dia também esteve com Saul.
Acredito que ao ver as vitórias de Davi e perceber como Deus operava através da vida daquele pequeno, Saul via a si mesmo, num passado distante. Davi era o “aviso-prévio” daquele rei decadente, era a confirmação de que para Saul não havia mais saída.
Mesmo assim o rei não se arrepende de suas faltas ele persegue Davi sempre que havia uma trégua entre as guerras, ele cria situações para que Davi morra, ele mesmo tenta matá-lo, oscila entre momentos de remorso e de fúria como que sofre de transtornos mentais sérios. Saul perde completamente o equilíbrio e a saúde, acabando por materializar em Davi o seu pior inimigo: Iahweh.
A pedra que saiu da funda de Davi não matou somente a Golias, mas destruiu também a Saul.
Capítulo 18 à 31 – Ao perseguir o jovem Davi, Saul o prepara para reinar
Quanto mais Saul persegue Davi, na intenção de matá-lo e assim preservar o trono para a sucessão de Jônatas, as situações criadas por ele servem para forjar o caráter do novo rei.
Gostaria de enumerar apenas alguns fatos importantes que aconteceram na vida de Davi motivados pela perseguição de Saul:
1.Sua amizade com Jônatas foi fortalecida, ensinando ao jovem Davi o valor de uma verdadeira amizade e o aspecto sagrado de um voto perante Deus (20:11-17).
2.Davi exilou-se em outros paises, aprendendo assim a tratar com diversos tipos de pessoas. Ele precisou se fazer de louco para uns (21:11-16), aliou-se com outros temporariamente (27:1-4) para fugir de Saul. Convive entre os vadios e fora-da-lei, aqueles mesmo que não aceitavam a liderança de Saul, levantando assim um exército pessoal em torno de seiscentos homens. Nesse ponto Davi exerce, mesmo que inconsciente, uma liderança paralela a de Saul, pois até mesmo um sacerdote alia-se ao bando de Davi (22:20-23).
3.Davi aprende sobre a misericórdia e sobre domínio próprio no episódio de Nabal e Abigail (25). A ingratidão de Nabal, mesmo sabendo da fraternidade existente entre os bandos de vadios e os donos de propriedade, que relativamente “pagavam” para ter segurança em suas terras, desperta a ira de Davi. Mas a sabedoria de Abigail, que se humilha, lembrando assim a Davi a sua própria pequenez, faz com que ele não volte sua mão contra Nabal. Davi aqui aprende a confiar na justiça retribuitiva de Deus, confiança e paciência que ele precisará ter com Saul, e mais tarde precisará exercê-la também com seu filho Absalão.
4.Davi compreende mais sobre o respeito ao cargo de monarca. Ao não matar Saul nas duas oportunidades que teve, ele estava atribuindo valor ao cargo de rei, reconhecendo que a autoridade de Deus estava sendo exercida na figura do monarca. Davi estava compreendendo a real importância da unção que havia recebido, e assim estava próximo daquilo que Deus desejava de um novo rei: a reverência perante a vida e as instituições divinas; o que claramente não houve em Saul.
5.No capítulo 27, Davi, mesmo aliado aos filisteus, usa de sua influência e de seu novo cargo a favor do povo que vivia no Negueb de Judá. Ele apreende a usar cada situação em favor do seu povo. No capitulo 30, no episódio dos despojos dos guerreiros, Davi exerce justiça e reconhece o valor dos homens que estavam com ele. Davi usa de discernimento ao entender que as vitórias eram pertencentes a todo exército, e não somente aos que lutam.
Confiança em Deus, senso de justiça, astúcia (prudência), sentimento de solidariedade e misericórdia são algumas das qualidades que foram forjadas no caráter de Davi ao longo de sua caminhada pelo deserto até chegar ao trono. Deus levanta no deserto, pelas mãos do próprio Saul, um rei que seria “segundo o seu coração”.
Capitulo 31 – Até mesmo na morte, Saul ainda preza pelas aparências
A morte de Saul é o retrato da profunda decadência de um homem que vive segundo as aparências, de acordo com o personagem que ele mesmo criou.
O mesmo rei que havia mandado matar todas as necromantes precisa agora recorrer à pitonisa de En-dor, algo mais fácil do que ter que reconhecer que Iahweh já o havia abandonado há tempos. Sua arrogância não dá trégua, pois se Iahweh já não lhe respondia, era a hora de Saul parar de lutar contra Deus e reconhecer que tudo estava perdido para seu reino.
O orgulho não dá brecha, e Saul recorre a uma necromante para saber o que deveria fazer. Mesmo sendo comunicado sobre sua futura derrota (que já estava tão visível que não precisava nem Samuel profetizar), a covardia de Saul o conduz a própria morte.
Saul tinha medo do povo, tinha medo do que “iriam pensar” sobre ele. Já que era para morrer, é melhor morrer lutando contra Deus e continuar posando de aliado de Iahweh. Sua atitude com Agag é relembrada durante a batalha contra os filisteus, levando ele a pensar: “Se esses incircuncisos me capturarem, vão escarnecer de mim perante o povo, e meu nome será motivo de zombaria em toda a terra”.
Para quem vive de aparências, nada melhor do que forja uma morte gloriosa no campo de batalha, para que seu nome fosse lembrado como “o primeiro rei que deu sua vida pelo seu povo”.
Mas mesmo assim Saul não escapou da vergonha. Seu corpo e dos seus três filhos mortos em batalha foram decapitados, suas cabeças e suas armas foram exibidas em toda a cidade, como símbolo de vergonha, e logo após foram colocas no templo de Astarate, significando assim que uma deusa derrotou o rei de Iahweh. Fixados no muro da cidade de Betsã, seus corpos nus foram exibidos para total vergonha do reinado de Israel. O rei que sempre prezou pelas aparências não escapou de tamanha humilhação.
Talvez maior humilhação fora à atitude do povo de Israel. Ninguém, exceto o povo de Jabes-Gileade, que tinham uma divida de gratidão com Saul, foram os únicos a oferecerem sepultura para o rei e seus filhos. O restante não deu honra ao seu próprio rei, e covardemente não foram buscar seu corpo, nem mesmo sua própria tribo, Benjamim, tamanha a rejeição que Saul tinha entre os seus.
Conclusão
O monarca do povo morreu abandonado pelo seu ídolo. Saul trocou Deus por um ídolo, que era o seu próprio reino, seu próprio povo e sua própria imagem. O primeiro rei israelita pecou por desejar não só ser o primeiro, mas o único; por desejar ser ele mesmo o próprio deus, mantendo por suas próprias forças aquilo que Iahweh havia lhe da graciosamente.
A transição de Saul para Davi é o símbolo da transição entre o governo dos homens e a liderança de Deus. É a tipologia da desastrosa auto-imagem que criamos e da presunção de buscar ser independente aos olhos de Deus. Saul era reflexo do coração de seu povo, Davi refletia o coração e vontade de Deus.
Acabo concluindo que a história de Saul e Davi não é apenas sobre uma transição política conturbada acontecida no passado remoto de Israel. Saul e Davi são os tipos de uma transição espiritual e existencial que devemos trilhar por toda nossa vida; a troca entre o reinado do eu pelo reinado de Jesus em nós e através de nós.