Um dia desses ouvi minha esposa conversando com uma amiga que recentemente deu a luz seu primeiro filho. Ela disse algo que achei interessante:
- Olha Paula! Eu descobri o que é o verdadeiro amor através da maternidade.
Imediatamente me lembrei de Deus, e de como não conseguimos entender seu amor. Aquela mulher conseguia perceber que o amor humano pode chegar a níveis que não sabemos; agora imagine como é o amor de Deus?
Por mais que eu queira compreender, o amor de Deus está além de todo entendimento. Porém, quando pensamos no amor divino, o fazemos de forma tão abstrata; sem alma, sem substância e sem consistência, que não conseguimos percebê-lo ou mesmo senti-lo como é devido. Por mais que eu não consiga alcançar a totalidade do amor de Deus, preciso ter alguma referência que me faça viver segundo esse amor.
Após ouvir essa frase fiquei com uma leve suspeita de que o amor de Deus é materno. Se uma mãe não deseja o mal de um filho, imagine Deus? Se um pai dá tudo que tem por um filho, imagine Deus? “Se um filho que pede pão aos pais não recebe em troca uma serpente”, imagine Deus?
Há tempos que já ouvia que amor de mãe é único, e o amor de Deus também. Então, que Deus seja nossa mãe.
O sermão de Cristo aos discípulos que começa no capítulo 14 e vai até o 17 tem de tudo um pouco: palavras de fé, esperança, amor; mas também tem palavras duras e difíceis de compreender. O próprio Cristo afirma no versículo 12 que algumas coisas deveriam ficar ocultas, pois excediam a capacidade de compreensão e aceitação dos discípulos.
Algumas palavras não são inspiradoras: “Eles vos expulsarão das sinagogas; mas vem a hora em que todo o que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus” (vs 2). “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim” (15:18). Mesmo assim Jesus conclui o seu discurso afirmando que suas palavras são para que tenhamos paz nele. Como ter paz diante de tais prognósticos?
Primeiramente, precisamos entende algo simples que está no versículo, porém decisivo para que alcancemos o entendimento da verdade. Jesus diz que a paz está nele, e isso faz toda a diferença. Desta afirmação deduzimos que:
1. A Paz não é um sentimento que nos acomete quando nos sentimos seguros. O mundo não oferece e nunca oferecerá ao homem as condições necessárias para que ele tenha paz. A Paz que depende do que é externo é por si mesma efêmera e inconstante, pois ela é simples construção humana, e como tal é falível. Todo o discurso de Jesus mostra que a Paz não surge da atividade humana.
2. A Paz cresce em nós à medida que permanecemos em Cristo. Para simbolizar essa verdade, Jesus utiliza a metáfora da videira. A permanência em Cristo é o caminhar para o propósito ao qual Deus nos chamou em Cristo, e tal certeza de caminhar é fruto de paz em nosso coração. Sendo assim, paz não é um sentimento autômato em nós, mas surge na decisão de permanecer em fé na trilha de Jesus. À medida que o galho se incorpora a árvore, tornando-se parte indissociável, a paz cresce como transformação provinda da fé. João trabalha fé como confiança no testemunho de Jesus, liberando amor do Pai sobre nós (16:27).
3. A Paz como fruto do relacionamento com o Paráclito. O discurso de Jesus mostra que sua morte e ressurreição serão o ápice de sua missão, porém, o seu retorno ao Pai não era motivo de alegria. Quem ama que estar junto do seu amor, e os discípulos não compreenderam a ausência do amado Mestre como algo pacificador para suas almas. Nisso, o Espírito Santo é soprado sobre os discípulos como um ato de renovação da esperança e da força de seguir, e esse é o objetivo do discurso de Jesus: mostrar que o Espírito Santo, como companheiro na nova jornada, é aquele que faz nova a esperança, a paz e coragem para caminhar. Seu sopro renovador dá a real prova de que verdadeiramente Jesus venceu o mundo, pois o mundo não é o bastante para tirar a paz do discípulo, pois o combustível do discípulo não é a história, a lógica ou as probabilidades, mas a fé que pelo Espírito Santo, Deus faz novas todas as coisas.
Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir (Jo 16:13). Falar, guiar e anunciar são verbos criador, mantenedor e recriador de tudo. Quando Deus falou ele criou os céus e a terra. Quando ele guiou seu povo ele sustentou sua promessa por sua fidelidade. E quando ele anunciar (pela fé esse verbo é sempre futuro) as coisas futuras ele simplesmente recria (e recriará) em nós e para nós a paz que surge da certeza da fé em amor a despeito de todas as forcas externas contrárias.
Sendo assim, não são as Palavras de Jesus, uma mistura de coisas boas e coisas ruins, a base da nossa paz. A paz provém de um relacionamento, uma permanência em Cristo, uma fé que vence o mundo pelos méritos de Jesus. Tal coisa excede todo o entendimento e toda tribulação.
Conheçamos e prossigamos em conhecer o Senhor! (Os 6:3)
Sabemos que a mentira pode provocar males além da nossa própria compreensão. A verdade é uma das virtudes mais preciosas ao cristão e deve sempre ser cultivada. Somos ligeiros a denunciar a mentira assim que ela é percebida, detestamos mentirosos, reprovamos todo tipo de falsidade.
Mas infelizmente existe uma categoria de mentira da qual dificilmente escapamos: o auto-engano. Esse mal surge da capacidade de criarmos uma vida que não corresponde com a realidade. Criamos um mundo ao nosso redor de acordo com aquilo que acreditamos ser o necessário para sermos aceitos em sociedade. O auto-engano nasce de uma mentirinha aqui, outra acolá, e das justificativas que damos a nós mesmos. Escondemos a nossa inadequação para sobrevivermos a mundo que não aceita os inadequados.
No aspecto religioso, tal atitude encontra raiz numa má interpretação da Bíblia. O Novo Testamento cita alguns mandamentos morais que Jesus nos deixou. Quando nos deparamos com afirmações do tipo: “Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra...” (Mt 5:39) ficamos atordoados e sem ter o que pensar. “Amem os inimigos...” (Mt 5:44) soa absurdo. As afirmações da ética evangélica são tão pesadas e de difícil aceitação que nos encontramos sem saída. O que fazemos? Geralmente abandonamos essas palavras “absurdas” e criamos personagens que no mínimo representem algo parecido com a ética de Cristo.
Há um estilo de vida chamado cristão que não compreende palavras de Jesus. Tal postura agrega nobreza e uma falsa piedade. Esse talvez seja o auto-engano por excelência. A capacidade de criarmos esconderijos e compararmos isso com a proteção de Deus. Acreditarmos que estamos protegidos sem necessariamente vivermos tudo aquilo que Jesus ensinou, porque enfim, os ensinos de Jesus são meio “malucos”, e sinceramente, impraticáveis.
O impraticável torna-se sempre descartável. As pessoas desejam uma religiosidade que possa ser vivida como um código de conduta, mas a mensagem de Jesus é elevada demais para que seja transformada em um manual de moralidade. Em tal desejo reside a raiz do auto-engano religioso. Somos semelhantes ao corredor que durante o treino foi desafiado a correr cem metros em cinco segundos. Ele se esforça, tenta várias vezes, porém fracassa. Ele então atribui a culpa ao tênis, a pista e por último ao pedido insano do treinador. Nunca reconhecemos que o problema está em nós, assim como o corredor nunca aceitaria que o fracasso está justamente na sua condição humana.
Sendo assim, compreendo as exigências de Cristo como a simples revelação de nossa total incapacidade de cumpri-las, ou seja, nossa total perdição. Enquanto pensamos em como criar mandamentos e personagens fictícios que supram nossa necessidade por adequação, passamos a viver uma religiosidade de barganha com Deus.
A lei de Deus simplesmente inverte toda a lógica humana e denuncia nossa total inadequação. Os “mandamentos” de Jesus simplesmente gritam aos nossos ouvidos para que deixemos de lado qualquer presunção de agradar a Deus com leis, rituais e códigos que possam suprir as nossas faltas. A ética cristã ataca diretamente a auto-imagem positiva que criamos de nós mesmos e que geralmente não condiz com a realidade.
Gostaria de citar Brennan Manning:
As demandas radicais de Jesus nos fazem lembrar diariamente de nossas faltas e perceber que a salvação é o dom gracioso de Deus. Neste ponto chegamos ao núcleo da revelação. Se o evangelho nos diz qualquer coisa, se a igreja proclama somente uma coisa ano após ano, é que a salvação é um dom gracioso de Deus. O evangelho é a alegre notícia da redenção graciosa. (pág. 35)
Leiamos 1Pe 2:9-10 e esqueçamos de toda teologia que tenta explicar o texto. Leiamos o texto apenas com simplicidade, e perceberemos que o autor fala de um estado presente. Tal salvação é percebida por aqueles que resolvem aceitar-se como realmente são; sem auto-engano. Talvez um dos sinais mais fortes da graça na vida do crente não é a impecabilidade, mas sim a aceitação de que Deus me aceitou independente da minha inadequação.
Caso possamos resumir o cristão em poucas palavras, diríamos que ele é alguém que diante da lei apenas teme e reconhece sua incapacidade, porque a graça lhe fala que o papel da lei é unicamente este. Sendo assim, a sua melhor atitude e deixar o auto-engano e viver grato pela aceitação de Deus. Sendo assim, o auto-engano dará lugar à graça.
Todos nós sabemos que a pergunta dos últimos tempos é a respeito da Espiritualidade. Todos querem saber sobre o que é espiritualidade, ou mesmo como se tornar uma pessoa espiritualizada. Como somos absorvidos pela mentalidade lógica e mecânica, somos atraídos por todo tipo de métodos e receitas estão disponíveis aos montes.
Porém, algo que me salta aos olhos, quando observo as prateleiras das livrarias, ou mesmo das locadoras de DVD: estão surgindo propostas de uma espiritualidade que seja aplicável ao cotidiano das pessoas. Aquele estereótipo do monge que fica recluso numa caverna, com roupas simples e meditando durante horas já não atraí tanto os Ocidentais. Hoje temos livros que tratam da espiritualidade no trabalho, na família, nos relacionamentos... Enfim, uma infinidade de “espiritualidades” voltadas para o prático, para o dia a dia.
Por outro lado, quando percebo a Igreja de hoje, vejo que nossos modelos de espiritualidade não tem se atualizado com o passar dos tempos. Ainda andamos na contra-mão dessa nova revolução, apesar dos vários produtos “gospel”. Na mentalidade de muitos, a espiritualidade cristã se resumi aos seguintes exercícios: Oração, Meditação e Leitura da Bíblia, Fuga dos pecados da carne, Demonstrações de poder sobrenatural.
Nossa receita de como ser espiritual é igual à de muitas outras religiões e filosofias: Quanto mais afastados do mundo carnal e da matéria, quantos mais desligados desse mundo, mais espirituais somos.
É necessário resignificarmos aquilo que chamamos de Espiritualidade. Precisamos enxergá-la não como esse combate dualista entre minha matéria e meu espírito, entre as obras da carne e fruto do Espírito. Como diz Leonardo Boff, espiritualidade é uma qualidade do espírito humano que integra o ser humano numa relação de profundidade com ele mesmo e com o próximo, ou seja, enxergar a si mesmo, ao mundo e ao próximo de forma mais profunda do que as aparências. Dalai Lama diz que espiritualidade é tudo aquilo que causa mudança interior. Podemos tomar essas afirmações como um ponto de partida válido.
Escolhi essa leitura do livro de Atos, pois sei que muito do que chamamos hoje de Espiritualidade foi forjado a partir da experiência do Dia de Pentecostes. A descida do Espírito Santo ali descrito é um tremendo símbolo dessa nova forma de espiritualidade: ela simboliza o nascimento de uma nova consciência em Cristo, ou da encarnação de Cristo em nós.
Vejamos de que forma isso fica evidente em Atos:
1.A espiritualidade cristã nasce de um evento diversificador e exterior: o falar em línguas.
Na Bíblia em nenhum outro momento é narrado que pessoas começaram a falar línguas diferentes da sua cultura de maneira sobrenatural. O único evento maior referente à linguagem seria a história da Torre de Babel, onde as línguas foram diversificadas. Interessante notar que em toda cultura imperial antiga, o reino que dominava o mundo sempre impunha sua língua como forma de violentar a identidade cultural dos dominados. Já o que ocorreu no Pentecostes é o contrário, pois Deus mostrou seu desejo de ser comunicado a todas as culturas sem com isso violentar a personalidade de ninguém. A espiritualidade cristã não pode ser resumir a um só entendimento. Ser espiritual é ser capaz de falar com o outro, entender o outro, ensinar e aprender com o outro, não impor barreiras para alcançar o outro.
(Só um parêntese: As línguas que falamos hoje são estranhas, tanto para nós mesmo como para os outros, e nossa postura muitas vezes e tão estranha e separatistas como as línguas que falamos.)
2.A espiritualidade cristã em Atos caminha para a convivência harmoniosa entre os diferentes.
Interessante que após o evento sobrenatural, Lucas não descreve uma igreja de fogo e sapateado, mas sim um lugar onde a comunhão é o maior milagre da espiritualidade.
O espiritual é aquele que conjuga o verbo compartilhar da mesma forma que o verbo orar, ler, jejuar. Qualidades como fraternidade e empatia são mais espirituais do que os dons sobrenaturais.
Os irmãos de Atos demonstram a espiritualidade no cuidado com o corpo, com a mente e com espírito no coletivo. Eles dividem as refeições e os bens, o ensino e o amor, revelando a espiritualidade como o cultivo das qualidades do espírito humano. Para Lucas, a Igreja precisava ser o projeto de uma nova sociedade. Espiritualidade que reflete no convívio social, “espiritualidade do nós”, que entra na prática de vida, que arregaça as mangas e coloca as mãos no mundo.
3.A espiritualidade cristã significa a capacidade de se deixar ser tocado, a sensibilidade e a profundidade de ser afetado por aquilo que lhe rodeia.
Pedro e João haviam passado diversas vezes pela porta do templo e viram o paralítico em todos esses momentos, mas num instante em que eles tiveram sensibilidade e se solidarizaram com aquele homem, eles se mostraram espirituais.
A Igreja antiga era caracterizada pela simpatia da cidade onde estava inserida, e tal coisa só se alcança quando afetamos e deixamos ser afetados pelas necessidades e clamores do próximo.
A igreja deve ser o ambiente que ofereça condições para exercitarmos a espiritualidade do coletivo, para além de nossas portas e dos limites de nossa religião. Interessante o trecho da Bíblia que está no versículo 13-14 do capitulo 4 de Atos:
13 - Quando o conselho viu a coragem de Pedro e João, e pôde ver que eles eram evidentemente homens simples e sem cultura, ficaram espantados e perceberam o que a convivência com Jesus havia feito neles!
14 – Mas o conselho dificilmente podia desmentir a cura, visto que o homem que eles haviam curado achava-se bem ali ao lado deles!
Eis aqui um resumo básico do evangelho, na ótica dos fariseus: Eles se impressionam com o que os discípulos se tornaram pela convivência com Jesus, e não somente pelo que falavam, mas pelo que faziam também.
Os discípulos foram afetados, tocados, e também afetaram e tocaram o paralítico. Da mesma forma, muitos relatos no evangelho mostram Jesus sendo comovido, sensibilizado, surpreendido, e isso o levava a tomar atitudes espirituais que não se encaixavam ao molde religioso da época. Os espirituais são aqueles que sentem semelhantemente a Jesus.
Conclusão
No texto sobre a cura do paralítico, durante o interrogatório dos fariseus, Pedro disse uma das frases mais conhecidas por nós: Julguem vocês mesmos se é justo diante de Deus que obedeçamos a vocês e não a Ele! Quanto a nós, não podemos nos calar sobre o que vimos e ouvimos.
O espiritual não pode deixar de viver sua espiritualidade assim como Pedro disse que não poderia deixar de falar de Jesus e sua mensagem (4:20), pois eles estavam impregnados da mentalidade de Jesus. Isso é a conseqüência natural do batismo com o Espírito Santo na Bíblia, a Espiritualidade como sendo a vivência de Jesus Cristo em nós se fazendo prática.
A espiritualidade passa pela oração, pela leitura da Bíblia, mas não se limita a isso. Sou espiritual quando consigo me comunicar os diferentes, conviver entre os diferentes de forma harmoniosa com os diferentes e ser afetado pelos diferentes ao ponto de gerar em mim atitudes de graça e amor. Resumindo: Espiritualidade é um estado de consciência renovado, uma restauração da imagem de Deus perdida há tempos.
Deus, livra-me do olhar dos religiosos. Pois a forma que eles olham para a vida, a própria vida não a reconhece. Deus, livra-me dos pensamentos dos religiosos. Pois os pensamentos deles lembra-me os algozes de Jesus. Deus, livra-me de estar no caminho dos religiosos. Pois está no caminho dos religiosos ameaça a minha integridade moral. Deus, livra-me de ser um religioso. Pois ser um religioso irá me fazer esquecer de Deus.
Pai, perdoa os religiosos. Pois os religiosos olham para o "dia mal" como um ato de castigo. Pai, perdoa os religiosos. Pois os religiosos pensam que te conhecem e pensam que pensam. Pai, perdoa os religiosos. Pois os religiosos caminham ainda com a cruz que tu carregaste. Pai, perdoa-me por não tolerar os religiosos.
Amém
O que escrevo é fruto de indignação. Por ouvir tantas barbaridades de "crente besta". A minha definição desse tipo de religioso é: Pessoa que se assemelham aos fariseus da época de Jesus (me perdoem os fariseus) Possuem regras, mas nunca entendem o que Jesus fala. (Nicodemos). Estão sempre com razão e para tudo que acontece na vida existe um porquê.
Gostaria de contar o que escutei, mas não vou reproduzir bobagem
Evaldo
O Evaldo e sua esposa, Rocassia, estão passando por um momento de muita luta em prol da cura da Leucemia de seu filho mais velho. Em momentos desesperadores como esse, infelizmente não chega até nós somente as palavras de carinho, conforto ou mesmo de ânimo. Somos quase que obrigados a ouvir todo tipo de besteira dita em nome de um "deus" completamente estranho ao Evangelho de Jesus. Não temos estrutura para aguentar todas as bobagens "cristãs" e teorias de conspiração divina, onde tudo na vida precisa estar sendo diretamente determinado por "deus".
Saiba disso meu irmão: eu também ouvi muita besteira, como você mesmo sabe. Compartilho com você da mesma indignação.
Um abração para você, sua esposa e seu filho, estamos em oração por vocês.
Talvez para alguns não seja novidade o que direi, mas mesmo assim direi. Acho interessante, para não dizer estranho, que haja o numero crescente de pessoas que estão na igreja, porém completamente traumatizadas e machucadas com ela. Não é raro, nas conversas que temos com uns e outros, encontrarmos pessoas que freqüentam os cultos e reuniões da igreja, mas que nutrem por ela um sentimento terrível de desconfiança, medo e até mesmo raiva.
Geralmente estão infelizes, insatisfeitas e frustradas. Não conseguem desenvolver relacionamentos além da superficialidade de um “oi” ou mesmo o famoso “a paz do Senhor” (é o novo!!! rsrsrs). Sempre na defensiva, não se abrem para uma amizade sincera e são dominados por um espírito altamente crítico, onde suas palavras sempre exaltam os defeitos da Igreja.
Pessoas com esses sintomas estão proliferando na igreja com uma intensidade maior do que pensamos. Quando digo que isso é estranho é pelo fato de que, anteriormente, pessoas que apresentavam esses “sintomas” eram os desviados, ou seja, pessoas que desistiam da vida em comunidade cristã. Atualmente pessoas assim não são necessariamente desviados, você nem imagina que alguém assim pode estar sentado no banco ao lado na sua igreja.
Desconfiança é o sentimento que habita as relações humanas hoje. Não confiamos em ninguém. Estamos sempre prevendo que as pessoas irão nos decepcionar e por isso não nos entregamos em nossas relações.
O pior é que não atentamos para um detalhe importante: Esse sentimento é completamente antagônico à essência da Igreja, a comunhão. Comunhão seria hoje melhor traduzido por compartilhamento. A Igreja é (ou pelo menos deveria ser) a comunidade daqueles que compartilham, sejam dores, mágoas, traumas, assim como alegrias e sorrisos.
Estamos na Igreja em “corpo presente”, mas muitas vezes sem alma, sem verdade, sem honestidade. Isso faz da Igreja, que deveria ser um local de cura, em uma fábrica de pessoas infelizes e insatisfeitas. Isso é quase uma “esquizofrenia cristã”.
Não tenho idéia de como esse estado pode ser alterado, apenas constato que isso está se tornando mais comum do que imaginamos. Mas acredito que precisamos viver e falar mais sobre comunhão, compartilhamento, sobre vencer a desconfiança e medo.
Culpa é um dos ingredientes mais nocivos da religião. Aliás, muita falação eclesiástica se esgota quando se desmascara a instrumentalização da culpa. Os auditórios religiosos lotam porque as pessoas são imperfeitas, carregadas de mazelas, incapazes de lidar com as sequelas da adolescência. É preciso ser corrigido, aperfeiçoado, purgado. Mas, inadequados diante de uma divindade absolutamente correta e exigente, todos se sentem devedores e ninguém tem o direito de esboçar qualquer defesa.
Recordo-me que nas brigas com o Renato Jorge, meu irmão um ano mais novo, eu usava uma arma infalível para vencê-lo: “Vou contar para o papai”, dizia. Para depois acrescentar: “Você pensa que eu não sei de tudo?”. Na verdade, não sabia de nada. Mas meu pobre irmão sempre tinha culpa no cartório. Rapidamente se rendia diante das minhas ameaças.
O senso comum dos religiosos é que todos estão degradados porque são inerentemente maus, promíscuos e ímpios. Daí o apelo recorrente dos púlpitos de que precisamos ser salvos de nós mesmos. Por toda a vida, aceitei esta lógica e acabei tornando-me o meu maior inimigo. Detestei-me por achar-me uma fonte perene de ruindade. Eu me fustigava esperando não apanhar de Deus.
Acreditava que antecipando-me às penas, conseguiria sensibilizá-lo. Imaginava que o Todo-Misericordioso contemplaria a minha autoflagelação e me trataria com leniência diante dos vergões.
Hoje já não acredito que precise ser salvo de mim mesmo. Pelo contrário, minha salvação acontece quando aprendo a conviver com o meu interior. Quando faço as pazes com meu ser. Quando me aproximo de quem está mais próximo de mim: eu.
Minhas pulsões de vida e de morte estão para além do bem e do mal. Não as considero pecado ou virtude, apenas forças poderosíssimas que compõem a minha humanidade. Dentro de mim habitam sombras e luzes. Não preciso exorcisar as sombras, demonizando-as, agora reconheço-as como partes de minha constituição.
Meus tropeções foram necessários – pecados, no linguajar religioso – na construção de minha história. Todo o processo pedagógico precisa deixar espaço para que se desafine, pise na bola, dê trombada, erre. Sem odiar, não se aprende o valor da doçura; sem invejar, não se aprende o valor da reverência; sem cobiçar, não se aprende o valor do contentamento. Ódio, inveja e cobiça, portanto, também me moldaram.
Não me detesto e não suspeito do meu corpo. Não me sinto podre. Contudo, não sou ingênuo. Reconheço que de dentro do meu coração brotam águas amargas. Minhas uvas são azedas. Sei que tenho um potencial destrutivo de mil bombas atômicas. Carrego ressentimentos. Meu espírito se encanta com o que não presta.
Lido com essas idiossincrasias, dando outro sentido para responsabilidade. Responsabilidade passou a ser definida como iniciativa e capacidade de responder às demandas éticas da vida. Pretendo tornar-me responsável não por culpa ou medo, mas por reverência à vida, ao meu próximo e à mim. Para ser íntegro, não preciso amputar narcos do coração e vilipendiar-me como um bandido ordinário. Para crescer, posso me valer, inclusive, de meu passado suspeitosíssimo.
Depois de noites insones, depois de me angústiar com tantas falhas, afirmo: as minhas maiores decepções e mais profundos fracassos me empurraram para frente. Com eles, ganhei coragem de encarar-me.
Todo novo degrau de maturidade é uma travessia. Toda mudança, morte e ressurreição. Nasci de novo desde que alcei bandeira branca na guerra que travava comigo mesmo. Hoje aceito que se Deus quis tabernacular em mim, não tenho o direito de implodir-me.
Desconfio de uma grande tolice. A da religião ao acreditar que as pessoas sejam fiéis aos preceitos por ela legitimados. Os crentes, suspeito, apenas usam os dogmas. Usam como um artifício de proteção. As crenças oficiais apenas justificam a vida dos crentes. São todos, na verdade, rebeldes. Com as luzes apagadas.
Explico. Nós, evangélicos, afirmamos ser a Bíblia nossa regra de fé e prática. Declaramos a quem reivindicar nossos pressupostos de fé que o texto sagrado é infalível e sua inerrância nossa garantia por excelência. Sem gaguejar, confessamos nossa confiança no que diz a Bíblia como sendo tudo o que de Deus foi-nos revelado. Cada palavra é a exata expressão do que Deus queria dizer, pregamos com paixão. Não dá para negar. Essa é uma expressão de fé reconfortante. Pena não corresponder ao mundo vivido dos crentes.
Na prática, desconfiamos do texto canonizado. Cada um de nós canoniza seus próprios textos. A regra, silenciosa e hábil, é a da plausibilidade. Acolhemos com devoção e folguedo os textos cuja prática fazem todo sentido. Apagamos com distração e cinismo aqueles que se mostram toscos e inverossímeis. Praticamos sistematicamente, ao menos pretensiosamente, os conselhos paulinos da promoção da alegria e rejeição da ansiedade, aos Filipenses, mas sequer nos incomodamos com a dedicação paulina à Satanás do voluptuoso que praticou incesto, com o fim de purificar sua alma, aos Coríntios.
Fazemos conviver em nosso mundo, ambiguamente, duas crenças. Aquela que nos acomoda e conforta e a outra que permeia nossa vivência. Uma, promete-nos uma vida segura, porque correta e piedosa, e a outra, convence-nos do que faz sentido. Uma, falante e retórica. Outra, silente e real. Eis a vida do religioso e sua esquizofrenia de sobrevivência. Afirma sua fé como sem dúvida. Vive a sua vida como sem fé. Na fé pronunciada, esquece-se do que vive. Na prática escamoteada, esquece-se do que confessa. Não o culpo. Ou é crente e não se suicida. Ou é honesto e relativiza seus dogmas.
Sugira a um crente evangélico que o texto bíblico é tão contingente quanto sua vida e você será tratado como uma ameaça a sua segurança. Uma bactéria herética a ser combatida com doses de antibióticos escrupulosos. Você pode lidar com a Bíblia e toda e qualquer crença como verdades contingentes, contanto que não admita. Crenças contingentes só com a luz apagada.
Verdades contingentes são aquelas crenças que podem ser verdade lá, mas podem deixar de ser aqui. Que podem ser plausíveis quando Paulo ensina aos escravos cristãos a serem bom escravos, mas não ser em nossos dias, em que a consciência dos direitos humanos expurgou a prática da escravidão. Você pode aconselhar brasileiros vitimados pelo trabalho escravo a denunciarem seus patrões como criminosos, mas ao ler a Carta a Filemon, faz de conta que “servo” não é o mesmo que “escravo”. Ao ler o milagre realizado por Jesus de transformar água em muito e no melhor vinho, faz de conta que era suco de uva e continua a apregoar seu ascetismo.
E pensar que eu já sofri tanto, preocupado em como organizar a doutrina. Quem precisa de uma? Alguém, por favor, acende a luz e pede para os crentes olharem com coragem para a verdadeira fé, aquela que seu bom senso permite que participe de sua prática! Aquela que conversa reverentemente com a Bíblia, a tradição, a consciência, os sentidos do mundo vivido e aceita crer com modéstia, franqueza e sensibilidade.
Uma fé que só se mantém com a luz apagada é uma ficção. E João, que nos disse que Deus é luz e que nele não há treva alguma? E seu convite a andarmos na luz com a mesma coragem existencial de Jesus para termos comunhão uns com os outros? Afinal, comunhão é a arte da honestidade e a Bíblia, verdadeira demais para ser reduzida aos quartos escuros, sectários e covardes das ficções religiosas.
Na década de 80 os Titãs lançaram uma música chamada “Comida”, onde os mesmo falavam que as pessoas estão desejosas de algo além da comida. A música era uma crítica a política assistencialista, das esmolas do governo para a sobrevivência dos miseráveis.
Mas a música não fala só de política. Na verdade ela demonstra uma qualidade inerente ao ser humano de buscar sempre a transcendência de sua condição animal. Minha vida precisa ser mais do que o alimento, ou dinheiro, mais do que a busca pela sobrevivência.
O ser humano é sempre um insatisfeito, e isso é ótimo, porque a insatisfação gera possibilidades de superação das condições atuais que nos encontramos. A insatisfação é um poder do espírito humano que o faz transcender sempre. Eu não sou o que sou, mas sou o que deveria ser.
A esperança que não anda de mãos dadas com a insatisfação será sempre comodismo disfarçado. Por isso que a esperança cristã hoje é apenas uma construção teórica de um mundo escatológico cada vez mais distante. Os ateus e agnósticos questionam a demora de Jesus, que prometeu voltar a 2.000 anos e até hoje não retornou. Não quero criar mais uma resposta a essa pergunta, mas quando me defronto com ela é inevitável pensar que a esperança cristã transformou-se comodismo cristão.
Se em mim há esperança por algo melhor no futuro, então preciso antes do poder da insatisfação com o hoje. Preciso dizer que eu não quero só comida, não quero só o que me foi dado até hoje. Cuidado, seja grato a Deus por tudo, mas não esteja satisfeito com hoje, o amanhã pode reservar coisas melhores.
Pode ser que os insatisfeitos vejam a volta de Jesus antes mesmo dos esperançosos.